Realmente franca?

Eu a vejo chegar todos os dias. Sempre de salto, cabelo preso, bem maquiada. Acho que ela é cientista de alguma fábrica. Nunca falei com ela. Só a observo pelo olho mágico. Acordo cedo para vê-la sair. Às vezes minha mãe fala com ela. Se cumprimentam e falam coisas relacionadas ao condomínio. Só. Faço o possível para a minha mãe não me ver espionando, mas acho que ela sabe.

Meu despertador toca as seis e dez. Com o menor número de ruídos possível, vou até a porta e para esperar. Depois que o meu relógio da sala marca seis e dezessete ela sai. Hoje ela estava especialmente linda: seu cabelo preso em um coque, sapato vermelho combinando com o batom e o vestido preto, aberto nas costas. Ela dá tchau para o seu gato preto, segura uma maleta branca com um crachá no pescoço e vai.

– O nome dela é Franca. – saltei contra a porta. Meu coração acelerou de um jeito cruel. Faz quanto tempo que minha mãe está aqui?

– Mãe! – sussurrei, arrastando a mãe para longe da porta. – O que você tá fazendo?

– O que você tá fazendo, Ricardo Augusto? – ela arrumou o xale sobre o ombro e engrossando a voz.

– Shhhh! Porra, mãe. Não grita.

– Não me manda calar a boca, Ricardo…

Em um passo ela acendeu a luz da sala e eu percebi que a merda já havia sido jogada no ventilador. Me sentei no sofá esperando o sermão, mas ela não falou nada. Simplesmente seguiu para a cozinha e colocou água na chaleira para esquentar.

Minha mãe é uma senhora de quase sessenta anos. Seu rosto é bem marcado das desilusões da vida. E esse é um dos motivos que ela me saca bem. Na verdade, muito bem.

Ela me observa pelo canto dos olhos enquanto eu a encaro descaradamente. Depois de colocar o café e os pãezinhos na mesa, minha mãe e eu trocamos olhares ameaçadores. Ela puxa a cadeira de frente a mim e se sentou sem mudar um traço do seu olhar. Sabia que tinha que ser eu a pessoa para quebrar o gelo para ouvir os xingamentos.

– Há quanto tempo a senhora sabe? – fui sentar à mesa também. Ela bufou quando terminei a pergunta.

– Quem sabe? Dois dias? Uma semana? Um mês? – comecei a morder um pão enquanto ela misturava o adoçante no café.

– Mãe…

– Isso é feio, sabia? Espionar os outros. Onde já se viu? Ricardo Augusto, você tem quinze anos e já age como um criminoso sequestrador! –ela sacudia a cabeça um tanto… indignada – Meu Deus! O que aconteceu contigo? Eu não te criei para ser assim, meu filho.

– Mãe, o nome disso é stalker… – não resisti.

– Como é que é? – ela parou de mexer o café e bateu com a mão na mesa.

– Olha só, é bem como a senhora disse. Eu tenho quinze anos e ela tem quase trinta, tá bom? A senhora quer que eu convide ela pra sair? Porque eu acho isso meio esquisito na atual idade em que eu e ela estamos…

– Claro, e daí o melhor jeito de arrumar as coisas é espionando ela todo o santo dia, não é? Isso é taradice, Ricardo Augusto.

– Não dá para conversar com a senhora… – fui para o meu quarto e deixei ela brigando com o vento da sala.

Quando fechei a porta com força, a escrivaninha do lado balançou como uma vara. Não sei exatamente porque estou indignado. Abri a cortina e a Captiva dela já havia sumido. Merda, foi o que pensei quando me atirei de cara no travesseiro.

– Ricardo Augusto! Você tem aula às 7h30! – a voz abafada da minha mãe entrando pela porta me fez bufar – Vai se atrasar! Não adianta bufar! Tira a cara remelada do travesseiro e vai se arrumar!

Aí só me restava seguir ordens.

No outro dia, eu não a vi. O motivo? É porque tenho medo de minha mãe. Não quero que ela me cague a pau ou me xingue de onde a vizinha possa nos ouvir.

Ela… Franca, isso? É um bom nome. Nunca achei que esse era seu nome. Tão diferente, mas bonito.

Um calor tomou todo o meu corpo. Será que eu deveria? Minha mãe saiu, foi até a casa da vó. Acho que só volta de tardezinha… acho que é uma boa hora para isso.

Liguei o PC e selecionei um playlist da banda Rose Noire. Sentei na cama e imaginei Franca tocando a campainha, seu toque no meu braço me pedindo sedutoramente para entrar em meu quarto. Tudo me deixava desconfortável, mas ainda mais quente. Quando me deitei para ficar mais relaxado, a campainha tocou de verdade. Em um segundo, a camiseta e o botão da minha calça voltaram para o meu corpo. Por que minha mãe voltaria tão cedo? Batidas enlouquecidas tocavam fortemente a porta da frente. Chegando ao olho mágico, percebi que não era o que eu estava imaginando: era Franca.

Desviei o olhar por um instante e joguei meu corpo para longe da porta. Ela parou de bater porque me viu no pequeno olho de vidro. Meu coração estava na garganta.

– Já vai! – gritei. Por que falei isso? Eu sei, precisava de um tempo pra me acalmar e entender. O que ela fazia na minha porta? Bom, se eu não abrir a porta, não irei descobrir…

Fiz um barulho intenso com a chave e fingi que estava colocando-a na porta. Abri de supetão e ela realmente estava ali. De bermuda e camiseta, cabelo preso e sem maquiagem. Seus olhos estavam arregalados e sua boca mostrava desespero.

Foi então que ela saltou em cima de mim. Eu não tive reação, seus braços envolveram meu corpo e sua boca envolveu a minha como ninguém ainda tinha feito. Café era o seu gosto. Não era ruim, apenas interessante. A parede que estava atrás de mim, virou a parede que estava atrás dela. Nós somos exatamente do mesmo tamanho – e ela está de chinelos – mas isso não me impediu de agarrar bem suas coxas. Nossos corpos estavam tão grudados, tão unidos pelo desejo que, mesmo por cima da blusa, senti as suas unhas tirando pedaços de minha pele.

– Ricardo, isso?

– Sim. – respondi seco.

– Tem como você dar uma olhadinha no meu notebook? Ele deu tela azul e não está ligando. Eu não estava fazendo nada de mais, não sei o que aconteceu.

Nós nos encaramos por um instante. Ela esperava uma resposta. E eu esperava que tudo que eu tinha vivido há dois segundos, não era simplesmente um sonho adolescente. Só que era.

– Claro.

Eu estava suando, não pelo fato de ter tido uma alucinação erótica bem na frente dela, mas porque eu estava entrando em seu apartamento. Seu gato foi bem receptivo comigo: me viu e se atirou no chão, rolando como uma minhoca fora da terra. Ele emitia um som estranho, como um trator ligado.

– Ah, Mimi adora uma visita. Ela fica o dia todo sozinha. Quando chega alguém ela faz a festa. – Ela levantou o ombro até a bochecha enquanto sorria.

Foi a coisa mais linda que eu tinha visto hoje e sempre. Acho que sempre será.

Ao contrário de Mimi, que era preta, a casa toda era clean. Tudo tão branquinho e perfeitamente no lugar. A estrutura do seu apartamento é o espelho do meu. E descobrir isso não foi uma sensação muito agradável.

Ela entrou na peça que equivale ao meu quarto e eu fiquei parado, no meio da sala. Sendo acompanhado por Mimi. Só ouvia o meu coração batendo em minha garganta.

– Vem. – Franca disse, com apenas a cabeça para fora do quarto. Assim como faço quando a minha mãe quer olhar nos meus olhos quando me faz jurar que não vou fazer isso ou aquilo.

Fui sem pensar, deixando Mimi ali com sua coreografia e grunhido. Quando entrei no quarto, me deparei com um mundo totalmente diferente da sala: livros por todos os cantos, papéis jogados pelo chão e colados por todas as paredes, um quadro gigantesco com formulas matemáticas.

– Esse é o meu home e esse é o ‘Moço que deu problema’. – ela apontou para o notebook que estava escondido atrás de alguns livros.

A tela azul ainda estava ali e já de cara eu percebi que o problema era só a atualização de alguns drivers.

– Acho… q-que vai… demorar um pouquinho. – eu disse, engasgando logo de cara.

– Por favor, sente-se e leve o tempo que precisar. – ela pegou uma xícara que estava em cima da cadeira que dizia “melhor namorada do mundo”. – Vou preparar um chá, aceita?

– Hã, sim.

Em um segundo, ela já havia saído do quarto. Tudo isso era esquisito de mais, eu estava no escritório dela e estava muito nervoso. Se fosse a minha mãe pedindo para arrumar o notebook dela eu ficaria puto da cara. Essa véia sempre me pedia pra arrumar as coisas estranhas que ela tentava fazer e nunca dava certo. Mas, graças a isso, minha mãe usou a sua santa boca para eu estar aqui. Valeu, mãe!

Meus olhos correram por todo o lugar e livros sobre química e matemática faziam o quarto um caos. Contudo, fiquei bem intrigado com uma palavra específica no quadro: ‘zumbi?’. A palavra apontava para um resultado esquisito no final de uma equação.

– Camomila ou cerejeira? – ela perguntou, me pegando com olhos curiosos em cima de seu quadro.

– Camomila. – respondi, enfiando a cara no notebook rapidamente.

Ela entrou no quarto e apagou o resultado e a palavra com a mão. Saiu sem dizer nada. Claro que isso me deixou intrigado. Por que uma cientista teria a palavra zumbi escrita no final de uma equação? E minha única resposta: arrumar o PC logo e tentar descobrir alguma coisa.

Antes de ela voltar, já estava instalando tudo o que precisava para o notebook funcionar mil por cento sem problemas e só o que restava era reiniciar, mas a minha curiosidade em relação as coisas era mais forte que o meu nervosismo de estar arrumando o PC de Franca.

Ela entrou no quarto com duas xícaras brancas e me entregou a da direita, mas eu não senti nenhum choque sentimental acontecer. Ela também parecia mais séria. Meu olho comprido a deixou preocupada? Engoli seco e perguntei, sentindo uma pequena coceira na garganta.

– Como você sabia que eu consertava computadores? – assoprei o chá sem tirar os olhos dela.

– Uma vez sua mãe me falou que você tinha feito um backup em um computador de uma amiga dela. – Ahá, sabia! Eu apertei meus lábios.

– E como você sabia meu nome?

– Bem, as paredes são finas, eu escuto sua mãe gritando o seu nome por aí. – Isso aí, mãe! Assim não dá, porra! Ela sorriu. – E então, o que era?

– Como assim? – meu coração acelerou.

– O que era com o note?

– Ah, sim. Só alguns drivers desinstalados e desatualizados. Às vezes o computador surta e não executa as coisas devidamente. Acho que é só reiniciar que vai funcionar bem.

– É engraçado, – ela olhou para a xícara, com uma expressão de vergonha – eu trabalho com microscópios, pipetas e máquinas gigantes, mas um retângulo desses eu não sei mexer quando estraga! – Ela suspirou seguida de sua risada estranha. – Bom, se é só reiniciar, eu posso fazer quando ele terminar de atualizar.

Olhei para o quadro com o nome apagado e retornei meu olhar para ela. Eu estava nervoso. Ela franziu a testa brevemente, acho que ela sacou meu plano.

– Hã, sem problemas. – tentei forçar o sorriso. Sabe aquela história do ataque cardíaco? Acho que está acontecendo agora. Larguei a xícara em cima de alguns livros e fiquei totalmente sem reação. Me levantei. Eu desviava o olhar, mas ela não parava de me encarar. Sua expressão não dizia nada.

Seu celular tocou, nós dois saltamos e olhamos para o bolso de sua bermuda.

– Desculpa, eu preciso atender, é do trabalho. – Ela limpou a garganta e se retirou da sala, atendendo o celular logo em seguida.

Imediatamente me sentei e me voltei para o notebook. Faltavam poucos segundos para ele reiniciar. Como foi eterno esse tempo, eu já secava o suor na minha camiseta. Quando finalmente aconteceu, jogou em minha cara a tela de senha. Mas que caralho! Testei a senha mais óbvia, sem pensar muito e deu certo: o nome da gata que me olhava da porta era a senha que eu precisava.

Mas pelo que eu iria procurar? Eu podia ter ficado maluco, zumbi poderia ser apenas um código para algo, mas então porque apagar a palavra? Não faz sentido, eu a observei por tanto tempo e ela nunca pareceu suspeita de nada. Na verdade, suspeito é esse notebook. O papel de parede é apenas a logomarca da empresa que ela trabalha e na área de trabalho só há uma pasta com o nome “Experimento OZI”.

Óbvio que cliquei duas vezes e abri. Havia muitos vídeos, nomeados por datas. Corri os olhos e percebi que um dos vídeos tinha a data de ontem. Levei a mão no mouse, mas alguma coisa dizia que eu ia me arrepender. Os fones estavam conectados ao computador. Coloquei um dos lados e dei play.

Inclinada em uma maca de hospital, cheia de fios tocando seu corpo, uma mulher agonizava silenciosamente. A mulher estava pálida e parecia sem vida para lutar pela sua vida. Foi quando Franca apareceu em frente aos meus olhos, naquele vídeo em exibição. Meu coração pulou outra vez e ela começou a dizer com a voz fraca:

– Experimento OZI. Paciente Sete. Registro número duzentos e treze. Depois de alguns cálculos e a descoberta da não reação do elemento químico estudado e adrenalina, a equipe concluiu que C9H13NO3 será aplicado em exatos duzentos mililitros na paciente Sete para a tentativa de reverter o seu estado atual. A equipe acredita que com esse novo processo, estará com melhoras a paciente, diagnosticada com H1N1.

Franca vira-se para o lado e faz sinal positivo com a cabeça. Duas pessoas entram na cena e em alguns segundos, aplicam uma injeção enorme na moça. Nada acontece primeiramente, mas após só haver a moça no vídeo, ela começa a ter convulsões. Ninguém vai ajudá-la e o painel que mede os batimentos cardíacos, agora só me mostrava duas linhas retas. Franca reaparece no vídeo e conclui dizendo que a paciente Sete está morta. O vídeo acaba.

Minha ideia é sair correndo e perguntar o que aquela fábrica faz com as pessoas, mas simplesmente avancei silenciosamente até a sala e a escutei sua voz na área de serviço.

– Sim, nós erramos. Os batimentos estavam tão baixos que nem o aparelho pegou. Ela não morreu. Se tivesse morrido, estaria morta agora. Refiz todos os cálculos, há chances disso acontecer. Tudo bem. Se ela quer voltar para casa, deixe-a ir. Dê dinheiro para ela pegar um transporte. Não! Nós não somos uma prisão. Eu preciso desligar, tenho um convidado em casa. Logo estarei aí.

Fingi que estava saindo do quarto. Ela me encarou com olhos espantados.

– Está tudo pronto. – eu disse, forçando um sorriso. Eu estava muito nervoso. Que porra era tudo isso? Isso quase saltou de minha boca.

– Claro! Nossa, você não sabe o quanto salvou minha vida. – ela largou o celular em uma mesa próxima e pegou sua bolsa. As duas mãos entraram na bolsa e vários papéis e chaves se sacudiam ali dentro – Eu não estou achando minha carteira agora, tem como passar amanhã para eu poder pagar pelo seu trabalho?

– Não! – gritei – Não precisa disso.

– Claro que precisa. Tudo na vida tem seu preço, Ricardo. Aprenda isso. – ela sorriu. Como posso achar que esse sorriso matou alguém?

– Hã, certo, então. Amanhã eu toco a campainha.

Ela me acompanhou até a porta. Ela passou a chave na porta, logo que coloquei o pé na rua. Ao entrar em casa, me sentei perto da porta, esperando algum ruído seu. Dito e feito, dez minutos depois ela saiu, cheia de livros e papéis. Seus olhos me viram pelo buraco no centro da porta. Pela primeira vez, queria que ela me visse ali.

A noite, só consegui ouvir o som de música eletrônica vindo de Porto Alegre. Logo pela manhã, vídeos de pessoas sendo atacadas por outras faziam fila na minha Linha do Tempo. Até, supreendentemente ficarmos sem nenhum pingo de energia. Mas a última vez que vi Franca foi naquele final de tarde. Minha mãe e eu entramos lá para procura-la, mas não havia roupas, nem comida, nem Mimi.

O amanhã veio e trouxe o apocalipse.

Fernanda Batista
Fernanda Batista