O que eu deveria ter dito

O que eu deveria ter dito

O que mais se podia ver dali era o azul do céu. Do oitavo andar, quase não se ouvia os carros passando na Nilo Peçanha. Também não se ouvia a pequena fábrica que existia ao lado do prédio.

A vista do apartamento era impressionante, ainda mais para um prédio antigo. A sorte é que nenhum outro arranha-céu estragou a vista da sacada.

Arrastando os pés, o vô Beto chegou com duas xícaras nas mãos. A vó Sisi já estava sentada na sacada, observando a avenida e as pessoas apressadas que estavam nela.

“Como aumentou o número de pessoas correndo por essa região, né?”

O vô entregou a xícara para a vó e se sentou em uma cadeira de balanço da sacada, dizendo:

“Sim, abriram aquela porcaria de loja aqui perto. Todos esses ginastas ficam vindo pra cá agora.”

“Eles têm que modernizar tudo. Senão não ganham dinheiro.”

O vô bufou depois de tomar um gole de café.

“Tá quente essa porcaria. Esses caras da economia são oportunistas salafrários, isso sim. Olha quantas tempo pra ajeitar essa rua. Ela nem precisava ser ajeitada! Isso é um absurdo.”

A vó apenas sorriu. Ela segurou a xícara com as duas mãos e levou até a boca, mas o que ela fez foi dar uma boa cheirada no aroma quase doce.

“Quem sabe a gente não se muda mesmo?”

O vô se arrumou na cadeira e cruzou as pernas. Ele largou o café na mesinha do lado da sua cadeira. A pergunta da vó perdurou pelo ar por algum tempo.

“Se mudar, Sirley? A gente senta nessa sacada há trinta e nove anos. A Ana resolveu se mudar e a gente resolveu mudar de vida também, daí viemos pra cá. Simples.”

“Eu sei, me lembro muito bem disso. É justamente por isso que eu tive essa ideia.”

“Não, sou totalmente contra.”

“Beto, olha essa vista, essa vista não lembra os momentos felizes da nossa vida? E que momento feliz da nossa vida a gente tem agora? Velhos, sozinhos, fazendo a mesma coisa há quase quarenta anos!”

“A gente não tá sozinho, Shirley. A gente tem a Maria Eduarda.”

“A Maria Eduarda tá na flor da juventude, não tem porque ela ficar dando atenção pra velhos que nem nós, não é menina? Quem sabe a gente não se muda para pra perto da nossa filha?”

“A gente não pode se mudar. Estamos velhos demais pra isso.”

“Naquela época tu achou que a gente não ia se acostumar com a Zona Norte.”

“Aquela época foi diferente.”

“Qual a diferença, Beto?”

“A diferença… Shirley, olha essa rua. Olha esse monte de prédios que tem agora lá no horizonte. Olha cada parte desse mundo. Não é mais o mesmo. Até nós não somos mais os mesmos depois de todas essas mudanças.”

“Por isso mesmo! A gente não pode mais ficar nesse lugar. Vai nos fazer mal.”

O vô levou a mão nas sobrancelhas e começou a acariciá-las, negando com a cabeça.

“Lembra quando a Ana disse que tinha achado o lugar ideal pra gente? Que a gente ia amar a vista?”

“Jamais esqueceria aquela ligação.”

“Ela fez questão de ir até a nossa casa, nos pegar de táxi e nos trazer até aqui. É menor que a casa, mas é ideal para um casal de chatos como vocês.

Os dois deram risada para disfarçar o efeito fisiológico da frase.

“A Ana era uma menina tão delicada. Sensível…”

Os olhos da vó se esvaziaram. O vô começou a acariciar a sua cadeira.

“Ela comprou essas cadeiras de balanços… faz quantas tempo?”

“Acho que há uns dez anos.”

“Ela já nos achava velhos naquela época. Lembro como se fosse hoje.”

“Tinha medo dessas cadeiras aqui na varanda. A Maria Eduarda era pequena… lembra como ela era arteira? Adorava subir nas coisas. Tinha medo que ela caísse daqui.”

“A Ana chegava com ela e já trancava a porta da sacada. Ela também tinha medo. Deixava a chave da porta presa ao dedo anelar, sempre segurando com a palma da mão.”

O silêncio tomou conta da sacada, A única coisa que falava era o vento. Talvez seria o momento para dizer algo, mas não fiz.

O vô finalmente pegou o seu café e tomou todo de uma vez só.

“Acho que tu tem razão, Shirley. A gente tem que se mudar.”

A vó largou a sua xícara e fez um esforço tremendo para se levantar. Ela ficou parada, olhando a vista, com uma mão nas costas.

“A gente tem que ir pro bairro Agronomia.”

“Não sei se é um bom lugar pra nós. A gente não conhece nada lá.”

“É pra ficar perto da nossa filha, Beto.”

“Mas não precisa ser dentro do cemitério!”

A vó virou o rosto para a vista, incomodada. Ela se encostou no peitoral. O vô levantou como um fósforo acendendo a chama e envolveu a vó com o seu braço.

“Mais de cinquenta anos juntos e nenhum de nós consegue entender como para um é fácil se desfazer das coisas. E nem como é difícil para o outro se desfazer das coisas.”

A vó suspirou.

“Todos esses anos, eu achava que tinha me apaixonado por essa vista no momento em que passei pela porta. Só que na verdade, eu quis ficar aqui só porque nossa filha gostou do lugar. Nunca tive tanta vontade de me mudar. Só queria ver nossa filha feliz.”

“E eu queria que a gente ficasse na casa, pra lembrar dos momentos da infância dela, do balanço, da amoreira, da lomba em que ela quebrou a perna..”

“Ah, esse dia que ela quebrou a perna… até hoje não entendo como tudo isso aconteceu. Quanta confusão!”

“É verdade. Acho que o Paulo fez tudo de propósito. Nunca gostei daquele guri.”

Eles sorriam. A vó se virou para a sala e me perguntou.

“Sabia disso, Maria Eduarda, que a tua mãe quebrou a perna quando ela tinha 11 anos?”

“Não sabia, vó ”

Respondi sorrindo.

“Ah, foi a maior confusão. A molecada da rua veio correndo pedir ajuda, gritando como um loucos. As meninas tinham ficado lá pra ajudar a tua mãe. Acho que foi o próprio Paulo que disse que a Ana tinha sido atropelada, pelo menos foi o que eu tinha entendido.”

“A mãe foi atropelada?”

“Não, ele falou que ela tava no meio da rua e que salvou ela de ser atropelada. Só que ele empurrou ela com força, fazendo ela cair da bicicleta, quebrando a perna. Mas no meio da confusão, não foi nada disso que eu ouvi”

O vô começou a gesticular como um louco.

“Eu peguei o moleque pelo braço e comecei a arrastar ele rua a fora. Ia entregar pra mãe dele, mas fui dando uns sopapos naquela cara tinhosa até a casa dele.”

Eu dei risada falando:

“O vô preferiu bater no guri do que ir ajudar a mãe e entender o que tava acontecendo!”

“Sim! Eu tive que sair correndo atrás da tua mãe e carregar ela até o carro.”

Todos nós estávamos olhando para a vista, com um ar quente entre nós.

“A Ana aprontou cada uma também. Muitas vezes eu pensava que ela nunca iria crescer.”

“Verdade, Beto. Verdade.”

Todos olharam para o chão, fechando o rosto. Outra vez aquele silêncio incompleto.

O vô e a vó se olharam. Eles sabiam o que deveriam fazer. O vô saiu arrastando os pés da sacada, vindo na minha direção.

“Maria Eduarda, a gente vai se mudar daqui.”

Eu deveria ter dito naquele momento:

“Não acho certo. Vocês são idosos, podem ter problemas se se mudarem daqui assim com tudo recente na cabeça. Ainda mais indo para dois passos da mãe. Isso não vai ser saudável para vocês.”

Mas o que eu disse foi:

“Tá bom, vô, eu ajudo vocês a fazer a mudança.”

E hoje olho para essas cadeiras de balanço vazias na sacada. A sacada que ouvi a vida inteira sobre ter cuidado, que quase não frequentei até ter idade de me cuidar sozinha. A vista que faz qualquer um mudar de ideia. Ou pelo menos se levar sob seus domínios.

Texto desenvolvido para a disciplina Repertório II – PucRS – Prof. Ricardo Araújo Barberena

Fernanda Batista
Fernanda Batista