Humana quebrada

    Meu psicólogo do trabalho disse que é importante expor minhas relações diárias, porque assim há como liberar mais espaço na memória.

    Eu trabalho na Winter, uma empresa que cria humanos em geral, desde os elétricos aos orgânicos. A tecnologia deles está bem avançada. Muitos já vão ao mercado fazer compras ou te buscam de carro no trabalho. Eu trabalho especificamente na parte de testes. Os superiores me entregam um produto e eu testo, sem saber quase nenhuma informação a respeito.

    Moro em um apartamento no centro da cidade. Levo quase uma hora até a Winter porque há muito trânsito saindo daqui. Nossa, há um monte de latas na rua! Cada um com suas cores acobreadas, tropeçando em suas próprias rodas, executando seus sistemas nos seus interesses. Essa cidade está ficando superlotada. Muitas vezes penso em sair daqui e ir ver o mar.

    Quero contar sobre um acontecimento bem estranho de hoje. Eu estava testando uma cabeça de passar e ela simplesmente parou, não esquentava nem nada. Então fiz um relatório e segui o procedimento padrão para qualquer produto: registrar no Humano-PC o ocorrido. Quando cheguei no Humano-PC, não consegui entregar o relatório e a cabeça para ela. Nas suas visões oculares escorriam água e seu rosto estava diferente do habitual.

– Mecanismo que pariu! – resmunguei.

     Quando me virei para chamar o supervisor de humanóide, ela me segurou.

– Por favor, não chame ninguém. Eu resolvo o seu problema.

    Sua voz era rouca e falha, de um jeito que nunca ouvi antes. Suas visões não paravam de sair água. Acho que a humana estava quebrada.

– O que você tem?

– Eu não sei, só uma dor muito forte na minha barriga.

– Acho que você precisa de conserto.

– Não! Por favor!

    Ela gritou e alguns funcionários de teste mais de perto pararam para ver o que estava acontecendo.

    Sorri para eles, tentando fazer ela se acalmar. Não queria que me zoem novamente por ter problemas com os humanos.

    Os robôs da empresa são muito baderneiros. Só gosto do Zynp. Ele me trás uma xícara de óleo de vez em quando, e a gente sai para tomar uns drinques e conquistar algumas máquinas. Só que na verdade, só ele conquista porque acho que devo ser muito feio.

    Mas voltando, entreguei os produtos para ela. Ela limpou sua face e me perguntou se eu gostaria de fazer uma entrega de produto danificado. Eu não sei o que estava se passando, talvez um defeito de fábrica, simplesmente tentei entender.

– Olha, eu sei que você é uma humana e também sei que vocês são produtos muito complexos. Por sinal, muitos robôs acham que devemos tirar vocês do mundo, mas eu acho que você foram criados para facilitar a vida. Hoje, nada funciona sem vocês. Esse lugar aqui não funciona sem você, não tire líquido do seu corpo assim, ok?

    Ela mostrou os dentes para mim. Seu rosto ficou rosado. Com uma expressão em seu rosto totalmente inversa ao que ela apresentava no instante anterior. Será que eu tinha conseguido consertar uma humana?

    Ela me agradeceu e disse que iria fazer o trabalho dela melhor daquele momento em diante.

    Obtive sucesso com ela. Acredito que seja por ter lido muitas e muitas vezes o manual de sentimentos dos seres humanos.

Fernanda Batista
Fernanda Batista