Catamarã

Na sms para Jenny eu escrevi:

Nós não podemos ficar sem nos falar.

É infantil esse tipo de atitude.

Vai deixar que isso nos afete assim?

Claro que, nesta tarde, ela não me respondeu.

Eu estava com meu namorado, Anthony, e minha amiga, Carmen esperando em um banquinho laranja-cenoura, olhando para o lago na cidade de Guaíba, o Catamarã nos levar de volta para Porto Alegre.

O sol forte do fim da tarde, me franzia a testa e me fazia usar as costas das mãos para secar as gotas de suor que brincavam no meu pescoço.

Estava na esperança que meu celular iria acender a luz e vibrar dizendo que eu havia recebido uma mensagem de resposta, mas as nuvens vagarosas que fechavam o sol me deixaram triste e alimentavam o nó dentro do meu peito.

Anthony me abraçou como um ato para me deixar feliz, percebendo que a áurea que me consumia era a tristeza, mas eu acabei ficando com mais nojo de mim mesma, porque não merecia ter um companheiro tão encantador e agradável. Não consegui me controlar e acabei deixando a angústia estragar a nossa tarde: lágrimas rolaram rosto abaixo.

Carmen que esperava a alguns metros de nós, sentada nas pedras limites da cidade e do lago, abaixou o celular e veio conferir o que estava acontecendo comigo.

– Está tudo bem, Laura? – ela se abaixou em minha frente, dizendo de animada para abatida – Eu estava fazendo um álbum de vocês e eu percebi que você está chorando…

– Nada demais! – me controlei tanto para não falar a verdade que as lágrimas molhavam ainda mais minha blusa – Só… me deixe, ok?

Movi meu ombro de um jeito que Anthony tirou o braço de meu pescoço. Ele se sentiu ofendido.

– Egoísmo da porra… – ele se levantou, mas me esperou para continuar o caminho – Vamos, a barca chegou.

Me levantei como se o ruído do motor do transporte hidroviário que chegara fosse a minha gasolina. Meu corpo simplesmente andou. Eu já havia estragado tudo mesmo; tinha sido um ótimo passeio até eu lembrar da briga com a minha melhor amiga.

Todos estavam empolgados com a chegada do transporte. Fotos e sorrisos me animavam um pouco, pois gosto de ver pessoas felizes, mas quando passamos pela roleta, havia um grupo de ciclistas que me deixou com dor de cabeça.

Suas bikes e corpos cheios de adrenalina exalavam cores vibrantes com euforia. Eram em torno de trinta mulheres e homens. Ouvi que pedalaram cerca de setenta e cinco quilômetros até o porto. Suas risadas me lembravam o miado de todos os meus gatos quando estavam com fome, cruzando minhas pernas e me deixando tonta de tanto me pressionar para dar o que eles querem.

Após entrarmos e sentarmos depois de muitas pessoas se acomodarem nas janelas, fiquei ainda mais emburrada pois todos aqueles ciclistas estavam entrando e o peso de seus corpos na frente do barco fazia com que ele tremesse com as ondas, me lembrando que estávamos em cima da água.

Carmen puxou os fones de dentro da bolsinha, conectou no celular e virou o rosto para a janela, apenas me evitando, já que eu não havia compartilhado meus sentimentos com ela. Eu simplesmente não queria envolve-la mais nisso, ela já sabe de muita coisa e deve achar que eu sou uma louca burra por isso. Anthony entrelaçou suavemente seus dedos nos meus e me observou, esperando minha reação. Não tive coragem de mover meus olhos para eles, mas aceitei sua mão. Não consigo ficar tanto tempo sem saber se ainda estamos conectados.

Os ciclistas sentaram aleatoriamente nos lugares que faríamos a viagem. Eles conversavam uns com os outros através de berros, zombarias e festejos. Cada risada fazia meu olho direito saltar para fora de minhas órbitas. Quando finalmente achei que estaríamos prontos para desembarcar, vejo no corredor que dá acesso ao barco, uma mulher de blusão preto. Seus olhos estavam dentro de uma poça negra, ali havia borrão de maquiagem, mas também eram olheiras profundas. Sua feição totalmente doente, não foi percebida pelas outras pessoas porque três ciclistas cantavam juntos perto do canto esquerdo da porta, ofuscando totalmente a entrada da mulher. Ela segurava o braço direito e parecia respirar com dificuldade. A acompanhei discretamente até sentar-se na poltrona do corredor ao fundo oposto do nosso lado. Do lado dela, estava um casal de namorados, que pareciam não se importar nem se o final do mundo acontecesse agora.

O marinheiro fechou a entrada e logo em seguida estávamos longe da costa.

– Te amo. – Anthony cortou o silêncio do nosso banco com essa bela melodia. Mesmo com a minha cabeça doendo, totalmente emburrada e triste, me voltei para ele e sorri.

– Também te amo…

Nossos olhos se cruzaram pela primeira vez nessa viagem.

Sua mão atravessou o ar e tocou o meu rosto. Foi tão bom sentir o seu toque que fechei os olhos, aproveitando cada segundo. Essa sensação era como se eu estivesse sentindo o vento do barco avançando: uma brisa forte que me puxa para dentro dela mesma. Deitei a cabeça em seu ombro, depois que nos aconchegamos como pássaros no ninho. A algazarra ao redor não penetrava mais em meu olho. Me sinto uma imbecil, por me preocupar e me sentir cabisbaixa por causa de pessoas que não se importam nem um pouco comigo.

Ficamos assim um tempo, antes de nossos lábios se atraírem como imas. Mas antes de haver o contato, Carmen colocou o celular de lado a alguns centímetros de sua boca e assoprou forte. O assovio nos intrigou, nos fazendo virar para ela. E Carmen estava lá, com um sorriso sarcástico nos lábios.

– Está tudo bem. Só estou apagando a vela que me deixaram…

Nós três caímos na risada. Se alguém é bom para fazer comentários impróprios nesse tipo de situação é Carmen. Tive que limpar as lágrimas dos meus olhos de tanto rir.

Mas logo um silêncio adentrou a barca depois de um gemido agonizante e uma pessoa caindo ao chão, na última fileira de assentos. Muitos se levantaram e saíram de seus lugares para ver o que aconteceu. A mulher de moletom preto estava se contorcendo agora no caminho entre os bancos, seu corpo estava meio pálido. Ela uivava baixinho de dor. As pessoas começaram a se apavorar, algumas levantaram os seus celulares e miraram para ela.

Os funcionários do barco só se atinaram em se aproximar e verificar se estava tudo bem, depois de uma senhora ciclista gritar para eles fazerem algo. A mulher de preto deu um suspiro forte e sua cabeça deitou no chão. Seu corpo agora imóvel, fez com que muita gente gritasse e se afastasse dela. Um dos funcionários saiu correndo para a porta, tropeçando em quem estava no corredor, depois de verificar o pulso da suposta morta.

– Ela está sem pulso! Vou chamar o comandante! Saiam, saiam! – A voz do homem com um colete salva-vidas deixou todos ainda mais eufóricos.

O outro funcionário, falou grosso e alto, como se pudessem controlar a pequena desordem que acontecia por ali.

– Quero que todos se acalmem e voltem para os seus lugares! Agora!

Segurei os pulsos da Carmen e do Anthony, fazendo com que eles sentassem junto comigo. Comentei baixo com eles:

– Eu vi quando essa mulher entrou, ela parecia tão doente…

– Por que não nos falou? – Anthony completou, com os olhos brancos de nervosismo.

– Não sei! Só tinha achado ela estranha e ignorei. – oscilei minha voz, pois estava nervosa também.

– Olha – Carmen falou olhando para a moça deitada – Tudo isso é muito estranho e nem temos como nos mandar daqui. A gente tá no meio do Guaíba…

Todos nós nos voltamos para a porta, quando o Capitão do Catamarã entrou. Clóvis, o nome que estava estampado no peito comandante, era alto e forte, como cabelo castanho claro, parecendo um pouco novo para o cargo que vestia aquela farda branca.

– Ali, senhor. – o funcionário que estava atrás do comandante apontou tremulo para a mulher atirada entre os assentos.

O capitão não disse nada, só avançou em direção a mulher sem fazer um único barulho se quer. As pessoas abriam caminho para ele passar e o seguindo assim que desse. Acho que ninguém percebeu, mas estávamos parados agora. Só havia terra firme, do lado direito e esquerdo depois de muita água.

– Estamos parados. – gesticulei com a boca para Carmen e Anthony. Eles estavam tensos.

O Comandante Clóvis acocorou-se, verificou o pulso e a respiração do corpo. Pelo seu rosto, não havia mais nenhuma chance de vida.

– A moça faleceu. Pelo seu estado, suponho que foi ataque cardíaco. – todos fizeram um coral ao mesmo tempo em que ele se levantou do chão. As pessoas estavam tristes e descrentes que as coisas tinham tomado esse rumo. Alguns começaram a rezar e fazer sinal da cruz.

Os celulares foram pouco a pouco abaixando, assim como algumas pessoas. O capitão caminhou de volta para a porta, ordenando que seus funcionários verificassem o nome da mulher na carteira e que a colocassem nos fundos, coberta por uma lona. Contrariados e com medo, eles seguram lentamente até o corpo, totalmente desacreditados das ordens dadas. Ou simplesmente porque não queriam tocar no corpo esbranquiçado ao chão.

– Ela tá se mexendo! – uma voz perto dela gritou esperançosa.

Todos se levantaram ao mesmo tempo, pessoas se aproximaram perplexas. O capitão virou-se e se se aproximou da moça, com as sobrancelhas franzidas. As pessoas próximas sorriam e passaram a bater palmas, como se o maior acontecimento do mundo acontecera.

– Ela está viva! – vozes felizes respondiam como um eco.

Olhei para Carmen, para entender por que ela sacudia o meu braço.

– Essas coisas só acontecem quando eu saio de casa. Você quer coisas inusitadas? Saia para Guaíba com a Carmen! HAHAHA – Carmen jorrou a piada sorridente, ainda nervosa.

Anthony olhou intrigado para mim.

– Isso está errado. Tem algo mais acontecendo…

Eu segurei a sua mão. Respirando profundamente. Ele estava certo. A moça estava sem pulso e sem vida. Agora está em pé. Nós não conseguíamos ver o seu rosto, mas com o jeito com que se mexia parecia confusa.

As pessoas foram acalmando-se em uma reação em cadeia. Pude vê-la finalmente entre todos. Seus olhos estavam diferentes, havia veias vermelhas tomando conta deles. Sua pele era esverdeada agora. Ela franzia os lábios mostrando os dentes e soltava bafos como grunhidos. Ela deu um passo e as pessoas que estavam naquela direção, institivamente recuaram.

Anthony segurou o meu braço e gesticulou mais uma vez com os lábios “venham, devagar”. Olhei para Carmen e ela estava pronta para nos seguir. Não sei para onde Anthony queria ir, mas estávamos nos encaminhando para fora do barco.

Os gemidos ficaram mais forte, mais altos e imponentes. As pessoas recuavam, mas ainda com os celulares em mãos. O Capitão passou, forçando as pessoas a saírem de seu caminho.

– Olá, moça qual o seu nome? – O capitão aproximou-se lentamente e tocou delicadamente a mulher. O grunhido que saia de sua boca ficou mais acelerado e alto. Como um cachorro faminto e raivoso, a mulher de preto mordeu o braço do Comandante Clóvis.

Gritos foram abafados quando a porta principal se fechou atrás de nós. Anthony nos guiava para a cabine do Capitão. Entramos e nos trancamos lá. Acima do painel de controle, tudo era de vidro, mas só víamos a água se mexendo perto do barco.

Os gritos agonizantes me faziam tremer. As pessoas começaram a se jogar naquela água. Anthony me abraçou e me forçou a ficar abaixada, só vendo os olhos arregalados de Carmen. O que será que está acontecendo lá em baixo para as pessoas preferirem morrer afogadas? Os gritos foram dando espaço para gemidos animalescos.

– O quê a gente vai fazer? – perguntei esperando que Anthony ou Carmen já tivessem o plano perfeito pronto para entrar em ação.

Mas nós três cruzamos olhares apavorados. Nada. Havia grunhidos chegando pela escada. As pessoas esverdeadas, imundas de sangue com olhos profundos e negros chegavam se empurrando na porta de vidro. Aqueles ciclistas animados teriam ficado assim? Monstros?

– Que porra é essa? – Anthony levantou e nos fez ficar mais afastados da porta.

– Eu… não… sei… – Carmen disse pausadamente, como se sua voz fosse trazer a resposta para a pergunta, mas acho que todos nós sabíamos o que era tudo isso.

Eles estavam se aglomerando do lado fora, naquela escada. Sangue escorria pelas escadas, pelos vidros, pelas mãos e pelas bocas deles. Todo o sangue lá de baixo já havia sido derramado pelos dentes famintos que agora querem os últimos corpos vivos do barco.

Através dos espaços entre as cabeças enlouquecidas, consegui ter uma ideia. Se for para morrer, que seja evitando um caos. Me levantei e só consegui focar o meu olhar na alavanca que parecia ser o que dá a aceleração para o Catamarã.

– Já sei o que precisamos fazer! – empurrei-a com toda a minha força e um solavanco deixou todos no lugar enquanto o barco avançava.

O soco foi forte que jogou algumas pessoas na água.

– Meu objetivo é bater com tudo na orla. Se o vidro for resistente, talvez a gente sobreviva. – disse, me recompondo e ajudando Carmen e Anthony a se segurarem nos puxadores.

Os grunhidos não param, enquanto a velocidade aumenta. Faltava pouco para chegarmos e nos pecharmos direto com a estação do Barra Shopping.

Na nossa porta ainda sobrava algumas pessoas e muito sangue.

Anthony me abraçou de um jeito que nosso corpo era só um. Estiquei a mão para Carmen que chorava sem querer chorar. Ela pegou em minha mão e ele se segurou no puxador. Estamos prontos para bater e esperar para ver o que iria acontecer. Eu não conseguia fechar os olhos. Queria gritar para as pessoas da orla que saíssem e corressem o mais rápido que pudessem, mas eu conheço os seres humanos. Já estavam com os celulares a postos, esperando a tragédia acontecer.

– Modo de estacionamento automático ativado.

Mas não aconteceu. A voz feminina saiu do painel enquanto fomos freando lentamente. Lágrimas brotaram do meu rosto, não consegui acreditar no que estava vendo. Paramos perfeitamente no porto. Tínhamos chegado. Os funcionários amarraram o Catamarã, baixaram a ponte para as pessoas mortas passarem. Nós vimos tudo da cabine, sem reação alguma.

– Acho que eu cometi o maior erro de todos.

Fernanda Batista
Fernanda Batista