Foi a maior gritaria. Quando Camillo entrou, todos começaram a se aproximar cada vez mais da grade, e eu fiquei ali entre eles, como se o mundo estivesse acabando. Ele começou o show com Just Go e todos foram ao delírio. A multidão começou a chegar mais perto. Não cabia mais nenhum corpo ali, mas sabe como são os humanos, né, acreditam que sempre podem mais.
E eu pulei quando todos pulavam, eu gritava quando todos gritavam. Todas as pessoas que estavam em minha volta, suados, eram um só. Todos estavam ali, por ele, mas eu queria muito mais, por isso cheguei tão cedo, pra ficar aqui, grudada nessa grade. Para ter a chance de tocá-lo quando ele saísse de trás daquelas quatro CDJ’s.
As batidas ecoavam dentro do meu conjunto de células e eu não conseguia parar de sorrir. Eu olhava para o telão e via o que eu estava vendo, bem na minha frente, mas em um tamanho absurdamente maior. Desta vez eu estava aqui, bem na frente, vendo e ouvindo cada detalhe com meus próprios olhos, não era pela tela do computador. Era aqui.
Olhei várias vezes para os lados tentando achar os meus amigos. Nada deles. Bateu aquele momento egoísta e eu pensei: “bom, eu estou aqui, isso que importa”. E quando mais uma música estourava, eu podia ver a satisfação no rosto dele ao sentir a vibração vinda do público. Deve ser muito bom estar ali em cima vendo, sentindo e fazendo tudo isso.
Foi quando ele finalmente subiu no ponto mais alto do palco. Todos sabiam o que iria acontecer, por isso, cada vez mais eu ficava apertada na grade. Todos estavam se empurrando para frente, não dava mais, mas para eles era óbvio que cabia um pouco mais. Só ergui minhas mãos para céu e rezei para que fosse em mim. E foi. Camillo se atirou na minha direção, na galera, como sempre faz. Ele não fica muito tempo, porque os seguranças não deixam. Se deixassem, nossa, ele iria ser devorado. Nem um pé do tênis sobraria para contar história.
São segundos. Em um instante ele está lá no palco e no outro já está lá novamente. Só que aconteceu uma coisa intrigante, quando estavam puxando-o de cima das pessoas, ele me deu uma joelhada no nariz. Caralho, aquilo doeu muito. Fiquei tonta e ouvi um zunido dentro da minha cabeça. Acreditei que meu nariz até sangrou no final, mas eu me esqueci de tudo quando o vi olhando nos meus olhos e sorrindo. Estava tendo uma vertigem, mas eu vi. Eu ouvi.
– Are you ok? I’m sorry!
Não consegui responder, pois rapidamente ele foi puxado para cima do palco e o show continuou. Fiquei em choque. Não consegui aproveitar direito o show depois daquilo. Não sei se foi o golpe. Não sei se foi o que disse. Meu corpo não estava ali. Larguei uma lágrima de dor e de felicidade.
Voltei à realidade quando fui esmagada contra a grade mais uma vez ao fim do show. Camillo subiu na mesa dos aparelhos e deu adeus com suas mãos enormes, agradecendo em português. Entraria outro DJ agora, mas como marquei com os meus amigos na saída após o termino do show, me encaminhei para lá.
Fui a última a chegar e Mari me recepcionou com a realidade do meu sonho:
– Porra, Lu, eu vi a joelhada que ele te deu! Caralho! Qual foi a sensação de apanhar do Camillo? – todos riram, inclusive eu.
– Foi uma joelhada… normal! Mas eu fiquei impressionada, ele pediu desculpas, cara!
Adriano passou o braço por cima do meu pescoço depois que acendeu um cigarro. Mari e Anita ficaram sorridentementes.
– Quer dizer que o Mister Camillo falou com você, então.
– Pior que eu não consegui responder porque eu estava tonta, Adriano. Sabe o que é isso? – já estava gritando.
– Ah, mas pelo menos você estava lá na frente. Quando começou a abertura, todo mundo começou a esmagar a gente, daí nós largamos. Não gosto de ficar sendo encoxado por macho, não. – Disse Rogério, abraçando e puxando a Anita pra perto de si.
Enquanto ríamos do Rogério, observei alguns focos de fumaça além do Guaíba. Esse início de manhã fazia com que eles se destacassem. Duas ambulâncias passaram na via principal praticamente há duzentos por hora. Aquilo me deu uma angustia. Será que estava acontecendo alguma coisa? Eu percebi uma certa movimentação do lado de fora.
– Gente, o que vocês acham de ir embora? Tá amanhecendo. – perguntei.
– Ah, não, Lu! – respondeu Mari, gesticulando furiosamente – A gente vai ficar mais um pouco pra ver o EtheUo.
– É verdade, o som está gostoso. Qual DJ é esse mesmo? – Anita perguntou tirando a carteira de cigarros do bolso.
– É o Frederick Snow. – Disse Adriano, agora dançando no ritmo das batidas.
Não reclamei, queria ficar, mas sei lá.
Curtimos a festa, ao fundo, em uma parte descoberta. A lua bonita estava descendo do céu, mas agora, o azul escuro estava cinza, coberto de fumaça.
Adriano estava comprando cerveja no bar, Anita e Rogério estavam se agarrando encostados na parede, eu e Mari estávamos curtindo a música, dançando e comentando sobre um grupo de meninos que olhava para nós a poucos metros de distância.
Foi quando ouvi um jato passando. Olhei para o céu e vi nada na penumbra cinza. Ouvi um jato passando aqui onde estou, em uma festival de música eletrônica. Será que ele estava passando assim tão perto? Mas foi no meio desses pensamentos que surgiram mais jatos. O som deles estava tão alto que abafava o evento. O pessoal olhou para cima, alguns se abaixaram de susto. O cinza afastou-se um pouco e eu finalmente consegui vê-los. Eles não estavam baixo e sim bem alto, mas eram muitos. Não consegui contar. Eram brancos e se destacaram no amanhecer. Estavam indo na direção sudoeste. Imediatamente pensei em ir para a minha casa.
Um dos meninos que estávamos olhando gritou aflito:
– Estão dizendo que é uma bomba nuclear! Na internet! Aqui é uma zona de quarentena!
Eu não entendi nada, mas fiquei assustada. Eu e Mari nos seguramos, na esperança de não nos perdermos porque sabíamos o que iria acontecer ali: desespero.
Os rumores se espelharam rápido em meio ao som alto e logo tínhamos correria. Surgiram muitos seguranças para acalmar a multidão. Estávamos juntos, mas Adriano não tinha voltado. Nós vimos pessoas correndo, nos empurravam como se fosse o fim do mundo. E era. Lá fora, dava para ouvir uma gritaria mais alta e desesperadora. Tiros atravessaram os tímpanos dos meus amigos.
– Cara, que se foda o Adriano, a gente precisa se salvar.
– Se for bomba mesmo, não vai restar nada de ninguém aqui! Aqui ou onde a gente estiver!
Rogério pegou a mão de Anita e eles entraram no meio de todos. Foi um desaparecimento instantâneo. Nem consegui argumentar. Eu e Mari continuamos ali, sendo, em alguns momentos, esmagadas pelas pessoas. Eu estava apavorada também, mas se fosse uma bomba nuclear, sair correndo não iria adiantar, em segundos estaríamos mortos. Precisávamos nos esconder.
– Lu, a gente precisa sair daqui agora! – Mari tentou me arrastar, gritando e chorando.
Precisava pensar rápido. Olhei para o lado dos banheiros químicos, segurei a mão de Mari e fui arrastando-a pelo meio da multidão, para o lado contrário que todos estavam indo. Ela gritava comigo e tentava soltar a minha mão, mas não soltei.
Quando chegamos naquela fileira de retângulos azuis, a empurrei para dentro de um.
– Se tranca e fica aí.
Corri para o banheiro do lado e me fechei. Só tive tempo de olhar para dentro do vaso, ver se não tinha, literalmente, nenhuma merda ali. Uma luz branca entrou pelas frestas, meus olhos arderam, e me cegaram. Ouvi um estouro longe e também alto. Antes de processar algo, meu corpo já estava sendo jogado de um lado para o outro naquela caixa e a música não fazia mais som. Tinha a sensação de que estava dentro de um brinquedo de parque de diversões, só que com dores pelo corpo. Desmaiei ao bater com a minha cabeça, muito forte, no vaso.
Não tenho certeza do que aconteceu, mas acordei com o sol que entrava pela janelinha, torrando as minhas costas. A cabine estava deitada e meu rosto não estava dentro do vaso sanitário, por pouco. Eu bati todo o meu corpo, mas nenhum pedaço dele estava quebrado.
O cheiro forte da urina quente fez eu me jogar para fora da caixa. Sem qualquer calculo sobre como estavam as condições do mundo. E não eram as melhores. Tinha lixo por todos os cantos. Ou melhor, restos da estrutura do show, restos de concreto e corpos queimados por todos os lados na beirada do Guaíba. Restos, lixos e corpos boiando na água. Ao longe, pude avistar pessoas andando a esmo, mas nesse momento, percebi que não adiantava pedir nenhum tipo de ajuda.
O céu refletia todo o sangue que estava derramado na cidade. Cara, que merda foi essa? O que aconteceu? Senti o meu rosto molhado, levei a mão e percebi que era sangue. Isso me fez perceber que eu estava tonta. Tentei andar, pulei alguns corpos e escombros, mas caí alguns metros depois perto de uma montanha de lonas. Encostei a cabeça em uma delas e pensei em como seria gostoso ouvir uma boa música agora. Eu queria respostas sobre tudo que estava acontecendo, mas também procurava por paz. Por quê? Eu não sei.
Senti uma mão molhada pegar minha perna. Minha reação foi gritar e chutar o máximo que pude. Um grunhido de help veio de baixo das lonas, foi só aí que raciocinei. Usei o mesmo pé para empurrar o que restou da estrutura do festival de cima dessa pessoa. Quando tirei os últimos restos com as mãos, vi o seu rosto. Estava desfigurado, queimado, ou sei lá o que fosse a consequência da bomba. Sangue escorria pelo canto da boca, mas o seu olho, o que restou, não parava de lacrimejar e me encarar de um jeito triste. Um aperto no peito fez meu corpo tremer. Pensei em como estariam os meus amigos agora.
– Camillo…
– Saveyourself…
Ele disse em um tom de voz baixo e falho. Ele começou a tossir, estava se afogando em seu próprio sangue, antes de fechar os olhos para sempre. Não existia mais amanhã para ele e nem para mim. Comecei a tossir também, tudo que saía de mim era vermelho. Olhei para os lados para ver se via alguém próximo, mas só via algo se mexendo ao longe. Tudo que eu tinha era restos, corpos e a bela visão do Guaíba. Belo Guaíba, quando foi a última vez em que passeei pelo Gasômetro, mesmo?
Essa foi a última coisa que pensei antes de cair por cima do corpo de Camillo. Como uma eternidade, vi pessoas se aproximarem de um jeito esquisito e com um grunhido, pedi ajuda. Instantaneamente, elas vieram me ajudar… Na verdade, vieram me devorar, porque só lembro de ter visto um grupo gigantesco se aproximando e mãos pálidas abrindo meu tórax. Uma dessas coisas comeu o órgão que me fazia viver pela música.