Arma de Saída

Já faz alguns dias que esse caos começou. Gente comendo gente. Fogo. Gritos. Apocalipse. Fim do mundo. Não pera, “fim do mundo” não é, porque se fosse, já estaríamos todos no céu; ou no inferno, mas não. Ainda estamos em Porto Alegre. Até uma pequena bomba foi lançada. Graças a isso, eu e meus pais tivemos que sair da nossa casa. Então, minha mãe e meu pai foram comidos por esses devoradores. Eu não tentei salva-los e não fiquei lá para ver o que iria acontecer com eles. Não me lembro de muita coisa só que corri como uma louca, atacando o que viesse pela frente com o machado do meu pai e os gritos de minha mãe dizendo para sair de lá. Coitado do meu pai e de minha mãe, eu nunca vou esquecer suas mortes. Será que rezar irá me absorver desse pecado?

Eu me instalei nessa cobertura há quatro dias. Quando cheguei aqui, havia uma família morta. O homem com um tiro na cabeça e a arma em suas mãos, indicando que matara sua esposa, seus dois filhos e sua mãe. Primeiro, eu surtei. Fiquei pensando em meus pais e como as coisas chegaram a isso. Me fechei no banheiro e chorei. Chorei, mas em silêncio. Vá que houvesse algum desses devoradores por aí. Depois de me olhar no espelho e perceber que mesmo no fim dos tempos eu não gostaria de me parecer com uma panda. Resolvi procurar balas daquela arma. Foi fácil, segunda gaveta fechada no armário do escritório. Claro que, me sentindo extremamente poderosa com munição e armamento. Atirei com dificuldades os corpos pela varanda da cozinha, logo depois de encontrar um estoque relativamente grande de comida não perecível. Não sei quanto tempo ficarei por aqui, mas fiz questão de tirar todas as manchas de sangue de minha visão.

Chorei mais um pouco a noite ao ver os devoradores andando sem rumo dez andares abaixo dos meus pés. Não acendi nenhuma vela, e a arma era a minha única companheira desse pesadelo.

Eu podia ver o Guaíba daqui de cima. Nossa, como essa visão era linda pra caralho. Isso me dava animo, já que o cheiro de gente morta ainda não tinha saído de minhas narinas. Queria que meus pais e a Ingrid vissem isso. Mas foi então que eu percebi no prédio do lado, um pequeno foco de luz. Um homem estava sentado na varanda, olhando em minha direção. Meu primeiro pensamento foi me esconder, mas ele foi mais rápido e levantou um pano branco para mim.

Por um segundo me senti segura, mas ele levantou sua espingarda e mirou em mim. Me atirei no chão e fiquei, tremendo e pedindo para mim mesma para ele não atirar. Cinco, dez minutos se passaram. Eu não ouvi nenhum ruído, tentei espionar. Não havia nem um sinal dele e nem de sua luz. Puta que pariu, tomara que ele não esteja vindo pra cá. Um leve sopro fino chegou a meus ouvidos e rapidamente estiquei minha visão para descobrir o que era esse som.

O dito cujo estava com folhas em mãos, levantadas e com coisas escritas voltadas ao meu prédio. Acho que posso chama-lo de meu agora. “DESCULPA, SÓ QUERIA MOSTRAR QUE ESTAVA ARMADO” era a sua mensagem. Ele largou as folhas e ergueu o pano branco novamente. Bom, sua letra era um ninho de passarinho, mas se não estivéssemos em um apocalipse ou algo do gênero, até que ele seria um cara bem interessante. Um daqueles caras que não dá para deixar escapar. Ele pousou uma das folhas na mureta, escreveu e me mostrou. “MEU NOME É LUCAS. TE VI CHEGAR AÍ” bom, acho que ele quer conversar. Como havia crianças na casa, fui procurar papel e canetas no quarto delas. Acho que um pouco de conversa não iria nos matar, não é mesmo?

Acendi uma vela e ficamos trocando informações à moda antiga sobre nossas vidas. Acho que posso chama-las de velhas, porque tenho certeza que essas vidas não vão voltar mais. Lucas, 22 anos, estudante de mecânica, lindo rosto. Se perdeu dos seus amigos há sete dias e a seis está na cobertura. Tem uma espingarda e um sorriso bonito. Pronto. Eu podia apresentar ele aos meus pais como meu futuro marido.

No passar dos dias, eu e ele nos comunicamos por papeis. Ouvimos tiros, gritos e carros passam em alta velocidade por cima dos devoradores. Lucas os chama de zumbis, mas eu ainda não acredito que essa porra toda seja isso.

“COMI MINHA ÚLTIMA LATA DE FEIJÃO ONTEM”, “VOU MORRER DE FOME EM POUCAS HORAS” foram suas placas no dia de hoje. Eu ainda tenho comida para mais 30 dias se duvidar. Quero o chamar para vir aqui, mas o problema é ele travessar a rua cheia de devoradores.

“TENHO MUITA COMIDA AQUI.” Respondi. “SERÁ QUE CONSIGO ATRAVESSAR?” eu não respondi sua pergunta. Lucas era a única coisa que mantinha minha sanidade em estado quase normal. Se ele não conseguisse, ficaria só eu e a minha arma. O espaço entre os prédios era de uma rua de três faixas, nem que ele quisesse conseguiria pular. Ficamos nos olhando por um bom tempo. Nós dois sabíamos as consequências. Tentei atirar uma lata qualquer de comida, mas minha força fez chamar a atenção de alguns devoradores lá embaixo quando a lata se chocou no chão.

“EU VOU” e “DEIXA A PORTA ABERTA” foram suas últimas frases antes seu rosto sumir por quase uma hora. Eu já estava podre de pânico. Não conseguia tirar os olhos da rua. Ele ainda não passou. Duas horas já. A noite pegava forma e as lágrimas do meu rosto não paravam de cair. Se ele morreu, um pouco dessa culpa é minha. Caralho! Que merda será que deu? Será que eu estava apaixonada? TONG! Eu até poderia estar apaixonada, mas era por um status que não existe mais. Nunca mais. TONG! Não posso me permitir esse tipo de ilusões agora. TONG! Mas que barulho será esse?

Infinitamente esse tong abafado invadia minha mente. Aço no aço. Vinha do corredor, mas o olho mágico não me mostrava nada. Não sei exatamente porque, mas segurei minha arma antes de abrir a porta. Minha esperança era que fosse ele, mas e se não fosse? Como um cachorro acuado, meti lentamente minha cabeça para fora da porta. Que merda! O som vinha de trás da porta corta fogo. Fui segurando a arma. Sabia que olhar filmes de ação iriam me ajudar algum dia. Me benzi e abri a porta com muito medo.

Lucas estava deitado na escada, olhando para cima e usando sua espingarda na mão esquerda para bater no corrimão.

– Lucas? – repeti algumas vezes aumentando o tom de voz.

– Oi, Rita. – Me olhando de cabeça para baixo, ouvi sua voz sair incompleta de sua boca como um último esforço que gostaria de fazer naquele momento. Seu rosto estava inchado e suas olheiras estavam profundas. Parei de seguir no exato momento que percebi que algo estava errado. Seu braço direto não existia mais. Apenas um espaço vazio com sangue. – Eles cortaram o meu braço e deram pro seu zumbi comer…

Dois homens surgiram no final da escada de jalecos azuis. Claro que a essa altura do campeonato, azuis eles não eram mais. Um deles portava uma arma que eu não sei qual é e o outro, ah, o outro tinha um devorador preso em uma camisa de força e a boca amordaçada, na coleira como um pittbull faminto.

Destravei a arma no mesmo instante em que a mirei no devorador. Não sabia se essa era realmente a minha mira certa, se o que aconteceria era realmente o que estava no plano deles, mas eu estou completamente com medo, o que me deixa plenamente de mente vazia.

– Olá, novinha. – O cara da arma falou, apontando ela para a minha cabeça – A gente ficou sabendo que o seu namorado tava vindo fazer uma festinha na tua casa. Daí a gente se convidou pra vir junto, mas ele quis bancar o bom moço e nos enganou. Então a gente teve que cortar o braço dele fora e alimentar o Osvaldo, nosso amigo aqui. – ele bateu no ombro do devorador. O bicho se remexeu tanto para tentar pegar a mão do cara, mas estava bem preso. Infelizmente. Os dois riram, como se brincar com esse ser fosse a coisa mais divertida do mundo.

– O que vocês querem? – gritei. Nervosa, medrosa, angustiada com a situação.

– Eles querem comida e armas…

– Cala a boca aí, babaca! – o outro cara chutou a barriga do Lucas, o fazendo tossir e ficar engasgado com seu próprio sangue.

– Já chega com essa merda! Se vocês querem comida, podem pegar!

Nenhum de nós abaixou as armas. O Lucas anda estava tossindo e agora o devorador estava tentando pegar o cara que mirava em mim. Aí está a minha chance! Claro que não pensei duas vezes. Não sei o que ia acontecer, mas só atirei no cara que segurava o bicho.

O estouro ecoou eternamente nessa escada apertada. Eu fui jogada para trás, mas não com a mesma intensidade que o cara que levou o tiro. Instantaneamente desmaiado, ele largou o devorador, que se atirou para cima do cara da arma. Os dois lutaram enquanto eu tentava arrastar desesperadamente o Lucas escada acima, mas um estouro igual ao que eu fiz invadiu o meu cérebro, me deixando completamente congelada. O cara atirou no meio da cabeça do devorador e ele foi jogado em cima do aliado desfalecido.

O cara estava irritado e nervoso. A arma que ele apontava para mim, tremia.

– Sua puta, eu vou te matar…

Eu tinha sangue nas mãos. Só havíamos avançado três degraus acima. Estávamos mortos. Eu e Lucas. Esse cara não ia deixar as coisas assim e ia embora. Sangue por todos os lados: na parede, na escada. Tudo estava uma obra prima vermelha.

Grunhidos passaram a invadir os corredores cada vez mais rapidamente. Ficando mais altos a cada instante. Eles estavam subindo como um tsunami. Era o som, o barulho. Os atrai como pássaros fugindo das chuvas.

Passei meus braços pelas axilas de Lucas e comecei a puxa-lo para cima novamente. Só que já era tarde de mais, não consegui deixar de ver quatro devoradores avançarem para cima do cara, que gastara todas as balas de sua arma com tiros em vão.

Lucas gritou agoniado e eu percebi que um deles havia pegado a sua perna. O grito dos dois aumentava o barulho nas escadarias. Se eu ficasse aqui, seria comida também. Seria engraçado se eles me comessem, já que eu os apelidei de devoradores, não é mesmo?

Larguei Lucas ali mesmo e subi correndo, tropeçando em meus próprios medos.

– Rita! Me ajuda! – foi a fala com mais vontade e expressão que eu ouvi sair dessa boca. Vendo Lucas ali, falando comigo, pedindo minha ajuda. Sonhei algumas vezes em como seria a sua voz, já que nos falamos tanto por palavras escritas. Lembrei de seu sorriso. Senti uma pequena faísca dentro do meu peito. Não podia deixa-lo aqui, assim, sendo devorado. Virando um Devorador.

Até tinha pensado em me apaixonar, mas como eu mencionei antes: estamos vivendo em um apocalipse. Essa é minha arma de saída: quando a bala atravessou as redondezas do coração de Lucas, eu me fechei na cobertura. Rezando para que nenhum deles tivesse me seguido.

Lembrei dos meus pais e mais uma vez percebi que desde que essa merda começou, eu só penso em não morrer. E vou continuar a fazer isso. Não morrer, mas para quê? Eu estou fazendo a coisa certa, Deus?

Fernanda Batista
Fernanda Batista